sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

(asa do 7º)

Casa do7ºC

1 comentário:

  1. Acaso

    No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
    Mas não, não é aquela.

    A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
    Perco-me subitamente da visão imediata,
    Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
    E a outra rapariga passa.

    Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
    Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
    E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

    Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
    Ao menos escrevem-se versos.
    Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por gênio, se calhar,
    Se calhar, ou até sem calhar,
    Maravilha das celebridades!

    Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
    Mas isto era a respeito de uma rapariga,
    De uma rapariga loira,
    Mas qual delas?
    Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
    Numa outra espécie de rua;
    E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
    Numa outra espécie de rua;
    Por que todas as recordações são a mesma recordação,
    Tudo que foi é a mesma morte,
    Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

    Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
    Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
    Pode ser... A rapariga loira?
    É a mesma afinal...
    Tudo é o mesmo afinal ...

    Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.

    Álvaro de Campos, in "Poemas"
    Heterónimo de Fernando Pessoa
    um beijinho
    Belinha

    ResponderEliminar