sexta-feira, 23 de junho de 2017

The River - Bruce Springsteen - Paris 85

Bruce Springsteen - Fire

Improviso confidencial…

Os machos em geral não entendem
que quando uma fêmea confessa
que anda com muita energia
isso não significa
pelo menos necessariamente
que ande com tesão e com vontade de foder
os machos aliás
também em geral
percebem muito pouco de fêmeas
e dos seus estados ou estádios de alma
refiro-me ao râguebi naturalmente
já imagino que vais dizer
que o teu amante parcial
esse que tem uma casa de mulher
e só veste roupa azul e conservadora
palavras tuas
merecia uma entrada porventura
menos gongórica
e que o sangue pedido
tarda a escorrer da tela
se queres mesmo sangue
dir-te-ei que ainda não percebi
quando me fazes certas confidências
sobre sindicalistas aéreos
se estás a tentar-me ao ciúme
ou ao ménage à trois
com legendas em japonês.

Ademar

Pensamento do dia...

segunda-feira, 19 de junho de 2017

MERYL STREEP BETTE MIDLER CHER OLIVIA NEWTON JOHN GOLDIE HAWN 'WHAT A WONDERFUL WORLD'

Os Meus Sonhos São Mais Belos que a Conversa Alheia

Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma - nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo senão aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia. 
Devo-me a humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim-próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus. 
Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo. 

Fernando Pessoa, 'Inéditos'

sábado, 17 de junho de 2017

Paulo Morais.Corrupção e compadrio, têm de ser combatidos com movimentos cívicos

Trechos do filme Como água para chocolate

Porque



Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

1967 - Luis Cilia - "É preciso avisar toda a gente"

1969 - Luis Cília - "Não me peçam razões"


Não me Peçam Razões...

Não me peçam razões, que não as tenho, 
Ou darei quantas queiram: bem sabemos 
Que razões são palavras, todas nascem 
Da mansa hipocrisia que aprendemos. 

Não me peçam razões por que se entenda 
A força de maré que me enche o peito, 
Este estar mal no mundo e nesta lei: 
Não fiz a lei e o mundo não aceito. 

Não me peçam razões, ou que as desculpe, 
Deste modo de amar e destruir: 
Quando a noite é de mais é que amanhece 
A cor de primavera que há-de vir. 

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis" 

Improviso cartesiano…

O cepticismo
é uma higiene dos sentidos
a humanidade
quer-se todos os dias interrogada
para não encardir.

Ademar

sexta-feira, 16 de junho de 2017

SÉTIMA LEGIÃO - Por quem não esqueci

Antologia poética (6)...

Iniciação...

Não cobiço nem disputo os teus olhos
não estou sequer à espera que me deixes ver através dos teus olhos
nem sei tão pouco se quero ver o que vêem e do modo como vêem os teus olhos
Nada do que possas ver me levará a ver e a pensar contigo
se eu não for capaz de aprender a ver pelos meus olhos e a pensar comigo
Não me digas como se caminha e por onde é o caminho
deixa-me simplesmente acompanhar-te quando eu quiser
Se o caminho dos teus passos estiver iluminado
pela mais cintilante das estrelas que espreitam as noites e os dias
mesmo que tu me percas e eu te perca
algures na caminhada certamente nos reencontraremos
Não me expliques como deverei ser
quando um dia as circunstâncias quiserem que eu me encontre
no espaço e no tempo de condições que tu entendes e dominas
Semeia-te como és e oferece-te simplesmente à colheita de todas as horas
Não me prendas as mãos
não faças delas instrumento dócil de inspirações que ainda não vivi
Deixa-me arriscar o barro talvez impróprio
na oficina onde ganham forma e paixão todos os sonhos que antecipam o futuro
E não me obrigues a ler os livros que eu ainda não adivinhei
nem queiras que eu saiba o que ainda não sou capaz de interrogar
Protege-me das incursões obrigatórias que sufocam o prazer da descoberta
e com o silêncio (intimamente sábio) das tuas palavras e dos teus gestos
ajuda-me serenamente a ler e a escrever a minha própria vida.

Ademar

publicado em "Descansando do Futuro (Reserva de Intimidade)", Asa, 2003

Uma torre, um rosto e a ponte entre ambos

Sandra sabia que um amigo é um irmão que se escolhe.

Roberto não tinha irmãos e lamentava-se…

Ela vivia numa alta torre sem janelas... pelo menos para a rua…

Ele era livre, mas estava preso a uma enorme vontade de conhecer o seu próprio rosto. Sabia que apenas um espelho, um espelho verdadeiro, poderia satisfazer esse seu íntimo e secreto desejo. Para Roberto cada pessoa servia de espelho para as outras e percebia muito bem quando uma pessoa lhe estava a mentir. Depois da primeira desilusão, ele não dava uma segunda oportunidade. Partia em busca do seu verdadeiro rosto noutro espelho e sonhava, em cada nova pessoa que conhecia, encontrar esse mesmo espelho.

Presa na torre, Sandra era livre na sua forma de abarcar o tempo, o espaço e a humanidade. Tinha, na música e na literatura, janelas e portas por onde entrava e saía sempre que as paredes a estreitassem. Num dia em que ela cantava uma música que falava de sorrisos e de feitiços, Roberto passou perto da torre onde ela vivia. Ao ouvir aquela música, quis saber quem a cantava.

Começaram, então, uma longa conversa que não poderia terminar nem que um dos dois morresse porque era tão agradável que, apesar de alguns períodos de silêncio, nenhum se esquecia do outro. Assim, a conversa retomava sempre que o acaso quisesse...

Entretanto, com inocência, com malícia e com muita paciência foram estreitando laços que os tornaram cada vez mais cúmplices.

Com o tempo e a impossibilidade de ver Sandra, pois a torre não tinha janelas para a rua, Roberto decidiu usar a imaginação para criar uma imagem do rosto dela.

Quando terminou a sua obra-prima, olhou-a com espanto ao perceber que era o rosto que ele sempre procurara em todos os espelhos.

Era realmente um rosto extraordinário!


Maria José Meireles 

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Por que Ipê Amarelo?

A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.”
 
Tratado geral das grandezas do ínfimo, Manoel de Barros

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Linha do equador...

Françoise Nielly
Por mais que eu desejasse

seria impossível

abraçar-te

(em hemisférios distintos)

haverá um tempo

um espaço

e um paralelo

neste silêncio compartilhado

a fronteira do que nunca se diz...



Maria José Meireles

terça-feira, 13 de junho de 2017

Horta 0

Fragmentos da tua Luz

Pensamento do dia...

Dizer uma mentira ou calar uma verdade são duas formas diferentes de enganar.

Maria José Meireles

segunda-feira, 12 de junho de 2017

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Mãe

Mãe: 

Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!

Miguel Torga, in 'Diário IV' 

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Sou tantos
que nem eu próprio sei
quantos

Ademar Santos
publicado em "Descansando do Futuro (Reserva de Intimidade)", Asa, 2003