Era uma aldeia de pescadores de onde a alegria fugira, e os dias e as noites se sucediam numa monotonia sem fim, das mesmas coisas que aconteciam, das mesmas coisas que se diziam, dos mesmos gestos que se faziam, e os olhares eram tristes, baços peixes que já nada procuravam, por saberem inútil procurar qualquer coisa, os rostos vazios de sorrisos e de surpresas, a morte prematura morando no enfado, só as intermináveis rotinas do dia a dia, prisão daqueles que se haviam condenado a si mesmos, sem esperanças, nenhuma outra praia pra onde navegar...
Até que o mar, quebrando um mundo, anunciou de longe que trazia nas suas ondas coisa nova, desconhecida, forma disforme que flutuava, e todos vieram à praia, na espera... E ali ficaram, até que o mar, sem se apressar, trouxe a coisa e a depositou na praia, surpresa triste, um homem morto...
E o que é que se pode fazer com um morto, se não enterrá-lo? Tomaram-no então para os preparativos de funeral, que naquela aldeia ficavam a cargo das mulheres; às vezes é mais grato preparar os mortos para a sepultura que acompanhar os vivos na morte em que se perderam ao viver. Foi levado para uma casa, os homens de fora, olhando...
No corpo morto as algas, os líquens, as coisas verdes do mar, testemunhas de funduras e distâncias, mistérios escondidos para sempre no silêncio de sua boca sem palavras...
As mãos começaram o trabalho, e nada se dizia, só os rostos tristes... Até que uma delas, um leve tremor no canto dos lábios, balbuciou:
– “É, se tivesse vivido entre nós teria de se ter curvado sempre para entrar em nossas casas. É muito alto...”
E todas assentiram com o silêncio.
– “Fico a pensar em como teria sido a sua voz”, disse uma outra. “Teria sido como o quebrar das ondas? Como a brisa nas folhas? Será que ele conhecia a magia das palavras que, uma vez ditas, fazem uma mulher colher uma flor e a colocar nos cabelos?”
As outras sorriram, surpresas de memórias que começavam a surgir de profundezas, como bolhas que sobem de espaços submarinos, desejos há muito esquecidos.
Foi então que uma outra, olhando aquelas mãos enormes, inertes, disse as saudades que arrepiavam a sua pele:
– “Estas mãos... que terão feito? Terão tomado no seu vazio um rosto de mulher? Terão sido ternas? Terão sabido amar?”
E elas sentiram que coisas belas e sorridentes, há muito esquecidas, passadas por mortas, nas suas funduras, saíam do ouvido e vinham, mansas, se dizer no silêncio do morto. A vida renascia na morte graciosa de um morto desconhecido e que, por isto mesmo, por ser desconhecido, deixava que pusessem no seu colo os desejos que a morte em vida proibira...
E os homens, do lado de fora, perceberam que algo estranho acontecia: os rostos das mulheres, maçãs em fogo, os olhos brilhantes, os lábios úmidos, o sorriso selvagem, e compreenderam o milagre: vida que voltava, ressurreição de mortos... E tiveram ciúmes do afogado... Olharam para si mesmos, se acharam pequenos e domesticados, e perguntaram se aquele homem teria feito gestos nobres (que eles não mais faziam) e pensaram que ele teria travado batalhas bonitas (onde a sua coragem?), e o viram brincando com crianças (mas lhes faltava a leveza...), e o invejaram amando como nenhum outro (mas onde se escondera o seu próprio amor?)...
Termina a estória dizendo que eles, finalmente, o enterraram.
Mas a aldeia nunca mais foi a mesma...
Não, não é à toa que conto esta estória. Foi quando soube da morte – ela cresceu dentro de mim. Claro que eu já suspeitava: os cavalos de guerra odeiam crianças; e o bronze das armas odeia canções, especialmente quando falam das flores, e não se ouve o ruflar lúgubre dos tambores da morte. Foi naquele dia, fim de abril, o mês do céu azul e do vento manso. Eu sabia da morte, mas havia em mim um riso teimoso, mais forte que o carrasco, esperança, visão de coisas que eu não sabia vivas. Foi então que me lembrei da história. Não, foi ela que se lembrou de mim, e veio para dar nome aos meus sentimentos e se contou de novo. Só que agora os rostos anônimos viraram rostos que eu vira, caminhando e cantando, seguindo a canção, risos que corriam para ver a banda passar contando coisas de amor, os rojões, as buzinas, as panelas, sinfonia que se tocava sobre a desculpa de um morto...
Mas não era isto, não era o morto: era o desejo que jorrava, vida, mar que saía de funduras reprimidas e se espraiava como onda, espumas e conchinhas, mansa e brincalhona...
Ah! O povo se descobrira, tão bonito como nunca suspeitara...
Não era raiva.
Não era azia.
Nem mesmo fome ou desemprego.
O bonito foi isto mesmo: que de tantos golpes, de tanta dor, tenham surgido canções, tenha brotado uma flor.
Lembra-se? Aconteceu na estação da Páscoa...
A Vida ressurge da Morte.
Três dias, vinte anos, um século... Não importa...
Por favor: conte para alguém a estória da aldeia que, depois de enterrar um morto, nunca mais foi a mesma.. Nós...
P.S.: Quase me esqueci de dizer. A estória é de Gabriel Garcia Marquez. Eu só a recontei do meu jeito...
(Rubem Alves, crônica para o jornal “Folha de São Paulo”, em 19/05/1984)
Até que o mar, quebrando um mundo, anunciou de longe que trazia nas suas ondas coisa nova, desconhecida, forma disforme que flutuava, e todos vieram à praia, na espera... E ali ficaram, até que o mar, sem se apressar, trouxe a coisa e a depositou na praia, surpresa triste, um homem morto...
E o que é que se pode fazer com um morto, se não enterrá-lo? Tomaram-no então para os preparativos de funeral, que naquela aldeia ficavam a cargo das mulheres; às vezes é mais grato preparar os mortos para a sepultura que acompanhar os vivos na morte em que se perderam ao viver. Foi levado para uma casa, os homens de fora, olhando...
No corpo morto as algas, os líquens, as coisas verdes do mar, testemunhas de funduras e distâncias, mistérios escondidos para sempre no silêncio de sua boca sem palavras...
As mãos começaram o trabalho, e nada se dizia, só os rostos tristes... Até que uma delas, um leve tremor no canto dos lábios, balbuciou:
– “É, se tivesse vivido entre nós teria de se ter curvado sempre para entrar em nossas casas. É muito alto...”
E todas assentiram com o silêncio.
– “Fico a pensar em como teria sido a sua voz”, disse uma outra. “Teria sido como o quebrar das ondas? Como a brisa nas folhas? Será que ele conhecia a magia das palavras que, uma vez ditas, fazem uma mulher colher uma flor e a colocar nos cabelos?”
As outras sorriram, surpresas de memórias que começavam a surgir de profundezas, como bolhas que sobem de espaços submarinos, desejos há muito esquecidos.
Foi então que uma outra, olhando aquelas mãos enormes, inertes, disse as saudades que arrepiavam a sua pele:
– “Estas mãos... que terão feito? Terão tomado no seu vazio um rosto de mulher? Terão sido ternas? Terão sabido amar?”
E elas sentiram que coisas belas e sorridentes, há muito esquecidas, passadas por mortas, nas suas funduras, saíam do ouvido e vinham, mansas, se dizer no silêncio do morto. A vida renascia na morte graciosa de um morto desconhecido e que, por isto mesmo, por ser desconhecido, deixava que pusessem no seu colo os desejos que a morte em vida proibira...
E os homens, do lado de fora, perceberam que algo estranho acontecia: os rostos das mulheres, maçãs em fogo, os olhos brilhantes, os lábios úmidos, o sorriso selvagem, e compreenderam o milagre: vida que voltava, ressurreição de mortos... E tiveram ciúmes do afogado... Olharam para si mesmos, se acharam pequenos e domesticados, e perguntaram se aquele homem teria feito gestos nobres (que eles não mais faziam) e pensaram que ele teria travado batalhas bonitas (onde a sua coragem?), e o viram brincando com crianças (mas lhes faltava a leveza...), e o invejaram amando como nenhum outro (mas onde se escondera o seu próprio amor?)...
Termina a estória dizendo que eles, finalmente, o enterraram.
Mas a aldeia nunca mais foi a mesma...
Não, não é à toa que conto esta estória. Foi quando soube da morte – ela cresceu dentro de mim. Claro que eu já suspeitava: os cavalos de guerra odeiam crianças; e o bronze das armas odeia canções, especialmente quando falam das flores, e não se ouve o ruflar lúgubre dos tambores da morte. Foi naquele dia, fim de abril, o mês do céu azul e do vento manso. Eu sabia da morte, mas havia em mim um riso teimoso, mais forte que o carrasco, esperança, visão de coisas que eu não sabia vivas. Foi então que me lembrei da história. Não, foi ela que se lembrou de mim, e veio para dar nome aos meus sentimentos e se contou de novo. Só que agora os rostos anônimos viraram rostos que eu vira, caminhando e cantando, seguindo a canção, risos que corriam para ver a banda passar contando coisas de amor, os rojões, as buzinas, as panelas, sinfonia que se tocava sobre a desculpa de um morto...
Mas não era isto, não era o morto: era o desejo que jorrava, vida, mar que saía de funduras reprimidas e se espraiava como onda, espumas e conchinhas, mansa e brincalhona...
Ah! O povo se descobrira, tão bonito como nunca suspeitara...
Não era raiva.
Não era azia.
Nem mesmo fome ou desemprego.
O bonito foi isto mesmo: que de tantos golpes, de tanta dor, tenham surgido canções, tenha brotado uma flor.
Lembra-se? Aconteceu na estação da Páscoa...
A Vida ressurge da Morte.
Três dias, vinte anos, um século... Não importa...
Por favor: conte para alguém a estória da aldeia que, depois de enterrar um morto, nunca mais foi a mesma.. Nós...
P.S.: Quase me esqueci de dizer. A estória é de Gabriel Garcia Marquez. Eu só a recontei do meu jeito...
(Rubem Alves, crônica para o jornal “Folha de São Paulo”, em 19/05/1984)
Maravilha!
ResponderEliminarLello