sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Ex-voto

Na tarde clara de um domingo quente, surpreendi-me
Intestinos urgentes, ânsia de vômito, choro
Desejo de raspar a cabeça e me por nua no centro da minha vida
E uivar até me secarem os ossos
Que queres que eu faça Deus?

Quando parei de chorar, o homem que me aguardava disse-me:
Voce é muito sensível, por isso tem falta de ar!
Chorei de novo porque era verdade e era também mentira, sendo só meio consolo

Respira fundo, insistiu!
Joga água fria no rosto, vamos dar uma volta, é psicológico

Que ex-voto levo à Aparecida se nao tenho doença e só lhe peço a cura?
Minha amiga devota se tornou budista. Torço para que se desiluda e volte a rezar comigo as orações católicas.

Eu nunca ia ser budista!
Por medo de não sofrer, por medo de ficar zen
Existe santo alegre ou são os biógrafos que os põem assim felizes como bobos?

Minas tem coisas terríveis.
A serra da piedade me transtorna.
Em meio a tanta rocha de tão imediata beleza, edificações geridas pelo inferno, pelo descriador do mundo.

O menino não consegue mais, vai morrer, sem força para sugar a corda de carne preta do que seria um seio, agora às moscas.

Meu coração é bom mas não aceita que o seja.
O homem me presenteia.
Porque tanto recebo quando seria justo mandarem-me à solitária?

Palavras não, eu disse. Eu só aceito chorar!
Porque então limpei os olhos quando avistei roseiras e mais o que não queria, de jeito nenhum queria aquela hora, o poema, meu ex-voto.
Não a forma do que é doente, mas do que é são em mim.
E rejeito e rejeito premida pela mesma força do que trabalha contra a beleza das rochas.

Me imploram amor Deus e o mundo.
Sou pois mais rica que os dois.
Só eu posso dizer a pedra: És bela até a aflição!
O mesmo que dizer a ele: Sois belo, belo, sois belo.

Quase entendo a razão da minha falta de ar
Ao escolher palavras com que narrar minha angústia, eu já respiro melhor.

A uns, Deus os quer doentes, a outros quer escrevendo.

Adélia Prado

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