terça-feira, 14 de maio de 2013

A não perder...

 
Maria Ondina

A arte de retratar, seja qual for o ramo de expressão artística, a forma de composição, o modelo, a técnica e os materiais escolhidos para o efeito, desde as origens aos tempos em que o curso da história lhe deu relevo e importância, mas o certo é que muito terá ficado por dizer, tantos são os rostos num rosto, e infinitas as variáveis do processo, que faz do retrato o objecto preferido por excelência pelo autor desta exposição.

Sabendo, quem é o retratado, o que retrata (pintor, escultor, fotógrafo) não pode dar como adquirida a verdade, de que conhece o essencial da personalidade que pretende retratar, porque a verdade do retratado, marcada pela improbabilidade do acto criador, será sempre uma verdade cruzada e centrada na tentativa de restituição de si próprio sobre o modelo, aquilo que o artista regista ou elege como essência do rosto retratado para esse fim.

Na sequência do percurso artístico orientado para a necessidade de realização que, do ponto de vista ético, e estético, tem como objectivo aproximar-se humanamente do retratado, de acordo com a gramática da criação do autor.

Hélder Carvalho, não temeu abraçar um dos mais árduos conceitos de modernidade, norteou-se por princípios que, não só se têm revelado fundamentais para a exaltação da generosidade criativa, como deles são fundamento da linha desse "prever para prover", do ofício e do artista que é, o indefectível curador da memória histórica profunda, que o torna sujeito activo da contemporaneidade e da geração a que pertence.

Como noutras exposições, como noutros espaços, a amostra, dada a público na cidade, que Francisco Sanches inscreveu nos univer­sos da ciência e do saber, constitui um momento privilegiado de convivência com as personalidades mais destacadas da vida intelectual e artística portuguesa, tais como: Florbela Espanca, Miguel Torga, Sophia de Mello Brainer, Eugénio de Andrade, Camilo Pessanha e Natália Correia, na literatura; Teixeira Lopes, Paula Rego e José Rodrigues, na pintura e escultura; Guilhermina Suggia, violoncelista; Emanuel Nunes e Siza Vieira, na composição musical e na arquitectura, respectivamente; Manoel Oliveira, no cinema; D. Manuel Clemente, proeminente figura do episcopado português; José Saramago e Amália Rodrigues, representante, entre nós e além-fronteiras, do que de melhor tem sido dado a conhecerem de Portugal ao mundo, nos domínios da erudição literária do fado, canção nacional reconhecida como património da humanidade. Tomando a arte do retrato como via de acesso ao conheci­mento humano e valorização do homem, corajosa opção artística, numa época ameaçada pela devastação de legados confrontados com o crescente "desterro da essência da humanidade", que George Steiner atribui à "barbárie política" e à "servidão tecnocrática" actuais.

Não deixo de reconhecer em que medida o trabalho do escultor, do pintor, continua a dignificar o destino artístico que, sendo seu, é afinal de todos nós, abrindo uma frente de resistência ao que, simulando ser verdade, se compraz em fazer: da aparência, real; e, da falta de alterna­tivas, debilidade contributiva da falsificação da história do conhecimen­to, firmada no simulacro, que o autor de Presenças Reais, qualificou sem hesitar de: "pornografia da insignificância".

Assumido arauto de um humanismo conquistado à medida do homem, e do ser, Hélder Carvalho confirma, assim, por inteiro, essa rara e desinter­essada (pequena) grandeza do artista, que aprendeu a fazer do seu plano criador um passo para conferir à humanidade o que, tantas vezes, esquecemos, enquanto seres dotados de finalidade, e mais do que isso, constituídos essencialmente por ela.

Há, porém, na arte do relato, uma inegável e inquietante verdade - a de que "somos seres olhados", e isso não se explica, não tem porquê, nasce e floresce, em cada primavera, como a Rosa de Silesius. Exposição a não perder na Casa dos Crivos, Braga. Não perca a oportunidade de ver esta excelente exposição.

ajoVê

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