quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Frioleira...


a nó
teço-te agora
uma renda
delicada.

Maria José Meireles

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Estrela cadente...

É pleno ver
como desaparece
e eu não sei mais
o que possa desejar
se já existes.



Maria José Meireles

sábado, 28 de outubro de 2017

Não digas nada!

Pensamento do dia...

O amor é uma linha invisível que sustenta a humanidade.

Maria José Meireles

sábado, 21 de outubro de 2017

Eixo imaginário...



És a linha
onde guardo
todas as flores
que encontrar.

Maria José Meireles

sábado, 14 de outubro de 2017

Fragmentos da tua Luz


É com muita honra e com muito orgulho que me sinto parte deste livro!

Maria José Meireles

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Energia e Ética

Sei isto: a minha energia está canalizada
Para a palavra fazer, gosto da ideia da construção
E o que dela existe nos movimentos normais.
Agrada-me a palavra engenharia e o que ela
Representa: não saias de um sítio sem deixares algo
Atrás de ti. Dirijo-me apenas às coisas que me excitam
Positivamente e me levam a fazer outras coisas, dirijo-me
Às pessoas de que gosto, nunca às de que não gosto;
Sempre me pareceu insensato que se pare,
Nem que por um momento, de admirar, há
Sempre actos e coisas que nos ajudam
neste cálculo infernal da distância entre o dia de hoje
e a nossa morte. E qualquer pessoa dar um passo que seja
em direcção ao que não aprecia, para insultar, ou derrubar,
parece-me brutal perda de tempo, uma falha grave
no órgão de admirar o mundo
(deves combater uma ou duas vezes na vida,
se combateres duzentas vezes
é porque os combates são fracos).
Não sei pois como viver. O que li e vi
Serve-me apenas para ser mais lúcido, não
Para ser melhor pessoa. Adquiri esta regra (ou nasci com ela):
- e é talvez uma moral -
mover-me apenas em direcção ao que gosto.
Se o prédio alto, escuro, feio
me impede de ver o sol, não fico a insultá-lo, não
moverei um dedo para o deitar abaixo:
contorno sim os edifícios necessários
até chegar ao espaço de onde possa receber aquilo que
quero. Se chegar lá de noite, montarei acampamento.

Gonçalo M. Tavares, in "Poesia" (2004)

Margarida...

Quis

que fosses

um mistério

nunca desvendado

uma luz

suave

e doce

o meu ocaso.


Maria José Meireles

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Texto de opinião...

Desde pequena que tenho por hábito olhar para os mais pequenos pormenores e encará-los como lições de vida e este caso não foi uma exceção. 
Estava no quinto ano, entrei na sala ainda com o manual de ciências na mão, tentava de todas as formas decorar a matéria, embora soubesse que estar a rever a matéria uns minutos antes do teste de nada me servia. 
Dirigi-me ao meu lugar e arrumei o livro. Em cima da mesa aguardavam apenas a minha esferográfica azul, o lápis e a borracha, como sempre, toda riscada. 
A insegurança que sentia naquele momento traduzia-se na borracha, outrora apenas riscada, que agora se multiplicava em pedaços mais pequenos, assim como no número invulgar de canetas que surgiam na minha mesa, para a eventualidade de alguma falhar. Por fim, já com o enunciado na mesa, a professora fez sinal para que começássemos. 
Para ser sincera, não me lembro se o teste me correu bem ou mal. Apenas recordo o meu colega da frente que, à mínima distração da professora, retirou debaixo da mesa um papel rapidamente. Devido às circunstâncias, percebi do que se tratava. Confesso que fiquei algo aborrecida com o que havia sucedido. No entanto, ignorei e procurei concentrar-me no meu teste. 
Uma semana depois, como de costume, a professora de ciências entrou na sala e escreveu o sumário: "Entrega e correção da ficha de avaliação". Inevitavelmente desencadeou uma onda de inquietação. Após cerca de dez minutos, já corriam pela sala os resultados e, consequentemente, o ruído aumentava exponencialmente só parando após a ameaça de trabalho de casa extra por parte da professora. Então o silêncio foi imediato. 
Foi nesse momento que fui surpreendida com a notícia de que a melhor nota da turma havia sido do meu colega da frente. 
Demorei algum tempo a refletir sobre o assunto e, por fim, cheguei à conclusão de que copiar, por vezes, é a solução e, para alguns, a única.


Vera Raquel Baptista Meireles

domingo, 17 de setembro de 2017

Girassol...


Agora

um girassol

solitário

aguarda

ao longe

para beber

na minha fonte.


Maria José Meireles

sábado, 16 de setembro de 2017

Pensamento do dia...

Pessoas pequenas não merecem a minha grandeza.

Maria José Meireles

Mel...

Depois de muitos séculos
de silêncio
depois de muitos séculos
de duras penas
conseguiu refazer-se
e recuperar as palavras
para lhe dizer ainda:
nos teus olhos
reencontro
toda a doçura
que agora me negas.



Maria José Meireles

domingo, 10 de setembro de 2017

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

O difícil é olharmos
Para uma folha em branco
E tirar dela o nada
Que afinal a enche tanto

José Luís Ferreira

domingo, 13 de agosto de 2017

O teu silêncio...



O teu silêncio

é uma vela

acesa

a esperança

na eternidade.




Maria José Meireles

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

domingo, 6 de agosto de 2017

Acontecer...



Fiquei cativa
de um crime
que prescreveu...
Entreguei-me
para cumprir a pena
mas ninguém quis
o problema...
Então recolho-me
procuro-me
e pergunto-me:
o que espero?

Maria José Meireles

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Sonata ao luar



Sombra Boa não tinha e-mail.
Escreveu um bilhete:
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta.
Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro
e atiçou:
Vai Ramela, passa!
Ramela alcançou a cozinha num átimo.
Maria leu e sorriu.
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se fez
Sob um luar sem defeito de abril.

Manoel de Barros

Linhas Tortas - CD Crianceiras - Manoel De Barros



Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais curta (Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a ladeira do beco, torto e deserto… toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.

Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.

Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.

Manoel de Barros

sábado, 29 de julho de 2017

Rei do mar

Muitas Velas. Muitos Remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.
Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta Vida. Longo Mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.

Cecília Meireles

sexta-feira, 28 de julho de 2017

domingo, 23 de julho de 2017

Regresso...

Regresso
sempre
aqui
quando a alma
está faminta.
Este canto
é alimento
e há em mim
um piano
que não se quer
abandonado.



Maria José Meireles

sábado, 22 de julho de 2017

Teresinha Ópera do Malandro de Chico Buarque



O primeiro me chegou
Como quem vem do florista:
Trouxe um bicho de pelúcia,
Trouxe um broche de ametista.
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha.
Me mostrou o seu relógio;
Me chamava de rainha.

Me encontrou tão desarmada,
Que tocou meu coração,
Mas não me negava nada
E, assustada, eu disse "não".

O segundo me chegou
Como quem chega do bar:
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar.
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida.
Vasculhou minha gaveta;
Me chamava de perdida.

Me encontrou tão desarmada,
Que arranhou meu coração,
Mas não me entregava nada
E, assustada, eu disse "não".

O terceiro me chegou
Como quem chega do nada:
Ele não me trouxe nada,
Também nada perguntou.
Mal sei como ele se chama,
Mas entendo o que ele quer!
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher.

Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não,
Se instalou feito posseiro
Dentro do meu coração.

Composição: Chico Buarque/Maria Bethânia

Horta 2

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Homenagem à Amizade


Lembrei-me dele e senti saudades... Tanto tempo que a gente não se vê! Dei-me conta, com uma intensidade incomum, da coisa rara que é a amizade. E, no entanto, é a coisa mais alegre que a vida nos dá. A beleza da poesia, da música, da natureza, as delícias da boa comida e da bebida perdem o gosto e ficam meio tristes quando não temos um amigo com quem compartilhá-las. Acho mesmo que tudo o que fazemos na vida pode se resumir nisto: a busca de um amigo, uma luta contra a solidão...

Lembrei-me de um trecho de Jean-Christophe, que li quando era jovem, e do qual nunca me esqueci. Romain Rolland descreve a primeira experiência com a amizade do seu herói adolescente. Já conhecera muitas pessoas nos curtos anos de sua vida. Mas o que experimentava naquele momento era diferente de tudo o que já sentira antes.

O encontro acontecera de repente, mas era como se já tivessem sido amigos a vida inteira. A experiência da amizade parece ter suas raízes fora do tempo, na eternidade. Um amigo é alguém com quem estivemos desde sempre.

Pela primeira vez, estando com alguém, não sentia necessidade de falar. Bastava a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro.

“Christophe voltou sozinho dentro da noite. Seu coração cantava ‘Tenho um amigo, tenho um amigo!’ Nada via. Nada ouvia. Não pensava em mais nada. Estava morto de sono e adormeceu apenas deitou-se. Mas durante a noite foi acordado duas ou três vezes, como que por uma idéia fixa. Repetia para si mesmo: ‘Tenho um amigo’, e tornava a adormecer.”

Jean-Christophe compreendera a essência da amizade. Amiga é aquela pessoa em cuja companhia não é preciso falar. Você tem aqui um teste para saber quantos amigos você tem. Se o silêncio entre vocês dois lhe causa ansiedade, se quando o assunto foge você se põe a procurar palavras para encher o vazio e manter a conversa animada, então a pessoa com quem você está não é amiga. Porque um amigo é alguém cuja presença procuramos não por causa daquilo que se vai fazer juntos, seja bater papo, comer, jogar ou tramar. Até que tudo isso pode acontecer. Mas a diferença está em que, quando a pessoa não é amiga, terminado o alegre e animado programa, vêm o silêncio e o vazio - que são insuportáveis. Nesse momento, o outro se transforma num incômodo que entulha o espaço e cuja despedida se espera com ansiedade.

Com o amigo é diferente. Não é preciso falar. Basta a alegria de estarem juntos, um ao lado do outro. Amigo é alguém cuja simples presença traz alegria independentemente do que se faça ou diga. A amizade anda por caminhos que não passam pelos programas.

Uma estória oriental conta de uma árvore solitária que se via no alto da montanha. Não tinha sido sempre assim. Em tempos passados, a montanha estivera coberta de árvores maravilhosas, altas e esguias, que os lenhadores cortaram e venderam. Mas aquela árvore era torta, não podia ser transformada em tábuas. Inútil para os seus propósitos, os lenhadores a deixaram lá. Depois vieram os caçadores de essências em busca de madeiras perfumadas. Mas a árvore torta, por não ter cheiro algum, foi desprezada e lá ficou. Por ser inútil, sobreviveu. Hoje ela está sozinha na montanha. Os viajantes se assentam sob a sua sombra e descansam.

Um amigo é como aquela árvore. Vive de sua inutilidade. Pode até ser útil eventualmente, mas não é isso que o torna um amigo. Sua inútil e fiel presença silenciosa torna a nossa solidão uma experiência de comunhão. Diante do amigo sabemos que não estamos sós. E alegria maior não pode existir.



RUBEM ALVES

quinta-feira, 20 de julho de 2017

No terceiro dia...



Sim

sabia que te encontrava

no terceiro dia

estava escrito

nas entrelinhas

da minha alma.



Maria José Meireles

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Pensamento do dia...

Daniela de Santos Ave Maria live

Convida-me só para jantar - Ana Goês

E não queiras depois fazer amor.
Convida-me só para jantar
num restaurante sossegado
numa mesa de canto
e fala devagar
e fala devagar
eu quero comer uma sopa quente
não quero comer mariscos
os mariscos atravancam-me o prato
e estou cansada para os afastar
fala assim devagar
devagar
não é preciso dizeres que sou bonita
mas não me fales de economia e de política
fala assim devagar
devagar
deita-me o vinho devagar
quando o meu copo já estiver vazio.
Estou convalescente
sou convalescente
não é preciso que o percebas
mas por favor não faças força em mim.
Fala, estás-me a dar de jantar
estás-me a pôr recostada à almofada
estás-me a fazer sorrir ao longe.

366 Poemas que Falam de Amor (antologia organizada por Vasco Graça Moura)

terça-feira, 18 de julho de 2017

segunda-feira, 17 de julho de 2017

sábado, 15 de julho de 2017

Pensamento do dia...

Existem três remédios que curam qualquer tipo de dor: tempo, silêncio e amor.

Edna Frigato

Pensamento do dia...

Horta 1

terça-feira, 11 de julho de 2017


"É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo que rompe os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua.
Mas de quê? De vinho, de poesia, de boa música ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos.
E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre a grama verde de um precipício, na solidão morna do vosso quarto, vós acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme, a tudo que anda, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, responder-vos-ão: 'É hora de embriagar-vos! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos: embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia, de boa música ou de virtude, à vossa maneira'."



Charles Baudelaire

domingo, 9 de julho de 2017

Uma estória

Macário era um menino a quem a mãe disse que devia estudar para ser alguém.

O menino nunca pensou que a mãe o enganava.

Muito menos a mãe pensava que estava a enganar o filho.

Sempre tinha ouvido dizer que era assim e, se todos diziam, é porque estava certo.

A mãe, Patrocínia, só queria o melhor para o seu menino e pensava desta forma ajudá-lo a conquistar um bom futuro, pelo menos melhor do que o dela.

Mas Macário cresceu e, embora nunca tivesse lido nem ouvido em lugar nenhum, senão no fundo do seu coração, descobriu sozinho que já era alguém desde o dia em que o pai dele escolheu um título para o poema que a sua mãe escreveu. Foi, então, que o menino aprendeu a ver-se com um outro olhar e o mundo inteiro ficou diferente.

Tudo ficou mais simples e mais bonito!


Maria José Meireles

sábado, 8 de julho de 2017

Ária (Variações Goldberg) J.S.Bach

Amalia Bautista

No fim de contas são poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos fazem bater o coração, e menos
ainda as que o tocam muito tempo.
No fim de contas, são pouquíssimas as coisas
que na verdade importam nesta vida:
poder amar alguém e ser amado,
e não morrer depois dos nossos filhos.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino.
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa.
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Álvaro de Campos

quarta-feira, 5 de julho de 2017

A menina e a fada madrinha

Maria era uma menina muito traquina, mas muito boa menina e havia uma fada malvada que queria controlar as suas traquinices.

Ora a fada malvada, Mafalda, teve a ousadia de dizer à boa menina que ela era má e que, se continuasse a fazer traquinices, acabaria sozinha.

A menina traquina, ingenuamente, informou a fada malvada que preferia ficar só do que ficar mal acompanhada.

Mafalda aproveitou essa informação preciosa e, a cada traquinice, desejava que a boa menina fosse cercada de más companhias.

E assim vivia Maria, sempre traquina, sempre ingénua e cada vez mais cercada por más companhias até que um dia… ganhou medo da solidão.

Com medo, a menina já quase nem era traquina e já quase nem era uma boa menina.

Foi, então, que Maria encontrou uma fada madrinha que percebeu que a menina era muito traquina e muito boa menina, mas que tinha medo da solidão.

Ora a fada madrinha, Ritinha, que era uma solitária, mostrou à menina que a solidão nada tem de medonho e que até pode ser muito agradável. Ensinou-lhe, também, que era muito importante saber estar só. Ela dizia que, quem não sabe estar só, não pode ser uma boa companhia.

Assim, Maria começou por treinar a solidão aos poucos até perder o medo de estar só.

Depois descobriu o prazer da comunhão com a Natureza que só se pode experimentar com alguma solidão.

Descobriu, igualmente, que sozinha conseguia ouvir música e ler com uma concentração maior e que a sua traquinice ganhava asas em formas criativas de pensar...

E a menina aprendeu a arte de ser feliz, como no poema de Cecília Meireles, aprendeu a olhar e a ver as pequenas felicidades certas.


Maria José Meireles

terça-feira, 4 de julho de 2017

segunda-feira, 19 de junho de 2017

MERYL STREEP BETTE MIDLER CHER OLIVIA NEWTON JOHN GOLDIE HAWN 'WHAT A WONDERFUL WORLD'

Os Meus Sonhos São Mais Belos que a Conversa Alheia

Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma - nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo senão aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia. 
Devo-me a humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim-próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus. 
Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo. 

Fernando Pessoa, 'Inéditos'

sábado, 17 de junho de 2017

Paulo Morais.Corrupção e compadrio, têm de ser combatidos com movimentos cívicos

Trechos do filme Como água para chocolate

Porque



Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

1967 - Luis Cilia - "É preciso avisar toda a gente"

1969 - Luis Cília - "Não me peçam razões"


Não me Peçam Razões...

Não me peçam razões, que não as tenho, 
Ou darei quantas queiram: bem sabemos 
Que razões são palavras, todas nascem 
Da mansa hipocrisia que aprendemos. 

Não me peçam razões por que se entenda 
A força de maré que me enche o peito, 
Este estar mal no mundo e nesta lei: 
Não fiz a lei e o mundo não aceito. 

Não me peçam razões, ou que as desculpe, 
Deste modo de amar e destruir: 
Quando a noite é de mais é que amanhece 
A cor de primavera que há-de vir. 

José Saramago, in "Os Poemas Possíveis" 

sexta-feira, 16 de junho de 2017

SÉTIMA LEGIÃO - Por quem não esqueci

Uma torre, um rosto e a ponte entre ambos

Sandra sabia que um amigo é um irmão que se escolhe.

Roberto não tinha irmãos e lamentava-se…

Ela vivia numa alta torre sem janelas... pelo menos para a rua…

Ele era livre, mas estava preso a uma enorme vontade de conhecer o seu próprio rosto. Sabia que apenas um espelho, um espelho verdadeiro, poderia satisfazer esse seu íntimo e secreto desejo. Para Roberto cada pessoa servia de espelho para as outras e percebia muito bem quando uma pessoa lhe estava a mentir. Depois da primeira desilusão, ele não dava uma segunda oportunidade. Partia em busca do seu verdadeiro rosto noutro espelho e sonhava, em cada nova pessoa que conhecia, encontrar esse mesmo espelho.

Presa na torre, Sandra era livre na sua forma de abarcar o tempo, o espaço e a humanidade. Tinha, na música e na literatura, janelas e portas por onde entrava e saía sempre que as paredes a estreitassem. Num dia em que ela cantava uma música que falava de sorrisos e de feitiços, Roberto passou perto da torre onde ela vivia. Ao ouvir aquela música, quis saber quem a cantava.

Começaram, então, uma longa conversa que não poderia terminar nem que um dos dois morresse porque era tão agradável que, apesar de alguns períodos de silêncio, nenhum se esquecia do outro. Assim, a conversa retomava sempre que o acaso quisesse...

Entretanto, com inocência, com malícia e com muita paciência foram estreitando laços que os tornaram cada vez mais cúmplices.

Com o tempo e a impossibilidade de ver Sandra, pois a torre não tinha janelas para a rua, Roberto decidiu usar a imaginação para criar uma imagem do rosto dela.

Quando terminou a sua obra-prima, olhou-a com espanto ao perceber que era o rosto que ele sempre procurara em todos os espelhos.

Era realmente um rosto extraordinário!


Maria José Meireles 

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Por que Ipê Amarelo?

A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.”
 
Tratado geral das grandezas do ínfimo, Manoel de Barros

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Linha do equador...

Françoise Nielly
Por mais que eu desejasse

seria impossível

abraçar-te

(em hemisférios distintos)

haverá um tempo

um espaço

e um paralelo

neste silêncio compartilhado

a fronteira do que nunca se diz...



Maria José Meireles

terça-feira, 13 de junho de 2017

Horta 0

Fragmentos da tua Luz

Pensamento do dia...

Dizer uma mentira ou calar uma verdade são duas formas diferentes de enganar.

Maria José Meireles

segunda-feira, 12 de junho de 2017

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Mãe

Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!

Miguel Torga, in 'Diário IV'

sábado, 20 de maio de 2017

Amanhã adormeci...


Se o mundo acordado

pode ser medonho,

menina sorriso,

conta-me

uma estória

(a minha)

para que eu possa dormir

amanhã...



(Grupo de Fados do ISEP)

Maria José Meireles

domingo, 30 de abril de 2017

Boa Sorte...


Cidra

era toda a sorte

que lhe cabia

no momento

em que ainda pensava

nela.



Maria José Meireles

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Só o amor me interessa

Nesta fase em que só o amor me interessa
o amor de quem quer que seja
do que quer que seja
o amor de um pequeno objecto
o amor dos teus olhos
o amor da liberdade

o estar à janela amando o trajecto voado
das pombas na tarde calma

nesta fase em que o amor é a música de rádio
que atravessa os quintais
e a criança que corre para casa
com um pão debaixo do braço

nesta fase em que o amor é não ler os jornais

podes vir podes vir em qualquer caravela
ou numa nuvem ou a pé pelas ruas
- aqui está uma janela acolá voam as pombas -

podes vir e sentar-te a falar com as pálpebras
pôr a mão sob o rosto e encher-te de luz

porque o amor meu amor é este equilíbrio
esta serenidade de coração e árvores

Egito Gonçalves (1920-2001)
in: Antologia Poética

quinta-feira, 13 de abril de 2017

Burrinha...



A santa e a burra

a burra e a santa

a santa é a burra

a burra é a santa

é a santa burra

e a burra santa.



Maria José Meireles

sábado, 8 de abril de 2017

O livro sobre nada


O livro sobre nada

É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
Tudo que não invento é falso.
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Tem mais presença em mim o que me falta.
Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário.
Sou muito preparado de conflitos.
Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção.
O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo.
Meu avesso é mais visível do que um poste.
Sábio é o que adivinha.
Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições.
A inércia é meu ato principal.
Não saio de dentro de mim nem pra pescar.
Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore.
Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma.
Peixe não tem honras nem horizontes.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Eu queria ser lido pelas pedras.
As palavras me escondem sem cuidado.
Aonde eu não estou as palavras me acham.
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
Uma palavra abriu o roupão pra mim. Ela deseja que eu a seja.
A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
Esta tarefa de cessar é que puxa minhas frases para antes de mim.
Ateu é uma pessoa capaz de provar cientificamente que não é nada. Só se compara aos santos. Os santos querem ser os vermes de Deus.
Melhor para chegar a nada é descobrir a verdade.
O artista é erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
Por pudor sou impuro.
O branco me corrompe.
Não gosto de palavra acostumada.
A minha diferença é sempre menos.
Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria.
Não preciso do fim para chegar.
Do lugar onde estou já fui embora.

Manoel de Barros

Seus amigos são verdadeiros ou falsos?│ Leandro Karnal

quinta-feira, 30 de março de 2017

Every Time We Say Goodbye - Diana Krall - (Live in Rio) HD

Motivo



Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.

Cecília Meireles

Pensamento do dia...

Só quando perdermos o medo poderemos ser verdadeiramente livres.

David Meireles

quarta-feira, 29 de março de 2017

Intimidade...


Quando estranhaste

dizer-me

e nem sabias

a intimidade

retirei-me em silêncio

antes que fosse tarde de mais.


Maria José Meireles

Pensamento do dia...

Que importa que os senhores falem e continuem a falar? Sempre alto. Muito alto. Demasiado alto. O silêncio é mais forte, mais puro.

António Ramos Rosa

segunda-feira, 27 de março de 2017

Last scene of Les uns et les autres (1980) - le boléro de Ravel (aka Bolero)

Se houvesse degraus na terra...

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

Herberto Helder

Todo o sentimento - Chico Buarque

quarta-feira, 22 de março de 2017

Nova casa...



Moro
numa casa
com arquitectura
engraçada
a perfeita
inexistência
que ninguém quer
habitar.



Maria José Meireles

segunda-feira, 20 de março de 2017

domingo, 19 de março de 2017

Raquel Alves fala sobre o livro A menina e o pássaro encantado

Se me aproximar - Tiago Bettencourt e Márcia


Se me aproximar

Se me aproximar devagar será que vais fugir?
ou se vou conseguir mais um tempo ao teu lado?
para te entreter mais um pouco ou te fazer sorrir
para ti ou pelo sonho vamos juntos viajar.
Medo é desculpa em leve chuva
e querer morrer de amor não é historia de outro tempo.
Mas se formos novos de novo
Mas se formos juntos 
vamos poder respirar

Se me desculpar entretanto
será que vais passar?
se fingir não querer 
pode ser que não te entregue esta leve dor em tom de chuva
por não querer fugir
por ti ou pelo sonho não consigo desprender
medo é fraqueza como nuvem
e querer morrer de amor nunca é historia de outro tempo
mas se formos novos de novo
mas se formos juntos
vamos poder respirar.

Tina Turner - Mother Within (Heavenly Home) - 'Beyond'

Tina Turner & Chuck Berry - Rock n roll music

segunda-feira, 13 de março de 2017

Cala os olhos, vagabundo.

Não me digas
que há estradas no mundo
sem urtigas.

Não me contes
que nascem astros nos vales
para além dos horizontes.

Não me fales
de haver poentes
com as cores ardentes
das penas dum galo.

Não me tentes,
vagabundo.

Não quero ver o mundo.
Prefiro imaginá-lo.

José Gomes Ferreira

Auto retrato...




Quando

não sabia

o que calavam

os teus olhos

escrevia apenas

em mim.






Maria José Meireles

MEU QUINTAL É MAIOR DO QUE O MUNDO | Manoel de Barros

domingo, 12 de março de 2017

Repórter TVI: "Livro Aberto"

No Repórter TVI deste domingo, olhamos para uma situação que bem podia servir de exemplo para o resto do país. Nos Açores, os manuais escolares são gratuitos para todas as famílias.

A TVI descobriu que o sistema que o Governo quer implementar em Portugal continental, já existe nos Açores há cinco anos.

Trata-se de um sistema que funciona muito bem com a colaboração de toda a comunidade escolar: a escola compra os manuais e empresta-os aos alunos que depois os devolvem em condições de bom uso, no final do ano letivo.

The Velvet Underground - The Velvet Underground & Nico [Full Album]

Filha...



Sempre 
que a paz
e o amor
brincam
a alegria
renasce.


Maria José Meireles

Pensamento do dia...

Um muro resolve-se com uma ponte.

Maria José Meireles

Estou de volta para o meu aconchego

Quero - Carlos Drummond de Andrade - voz de Paulo Autran

sábado, 11 de março de 2017

Mafalda Veiga - Olha Como a Vida É Boa

Orixá...

Judith - Klimt





















Vesti-me
com roupas
de outros santos
que agora dispo
devagar.



Maria José Meireles

quinta-feira, 9 de março de 2017

Exoneração...

Hoje

no palco de todos

os circos

escolho o Jorge

(que me ofereceu um chá)

para não morrer na semente

antes de todas as primaveras

e porque agora sei a coragem

da luz.


Maria José Meireles

12ºP2 - A Melhor Turma do Mundo

quarta-feira, 8 de março de 2017

Pensamento do dia...

Há uma força motriz mais poderosa que o vapor, a electricidade e a energia atómica: a vontade.

Albert Einstein

segunda-feira, 6 de março de 2017

O que a vida espera de nós?


Há tempos a vida me desafia obrigando-me olhar de frente para os obstáculos sem opção de fuga. Quando criança eu vivia as questões do lábio leporino de forma latente. Era tratamento atrás de tratamento e tempos difíceis na escola. Não me lamento... Os azedumes não me endureceram. Che Guevara, famoso revolucionário cubano escreveu “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás.” Por razões diferentes acho que ele ficaria orgulhoso de mim. Cada um com a sua batalha. Cada um com suas dores. Cada um com sua ternura. A vontade de viver nunca me abandonou. E com o passar do tempo fui descobrindo que quanto mais sensível e terna me tornava, mais próxima me sentia da vida. Até que um dia os tabus gentilmente fizeram parte da minha carne e do meu ser sem doer mais. E as lições que aprendi me trazem profundo orgulho pelas minhas lutas vencidas. E hoje atrevo-me a falar em público. Tudo o que jamais imaginei que um dia fosse fazer. Afinal lábio leporino afeta diretamente a fala. É verdade, mas meu coração não foi afetado. E sigo em frente.
Encontrei mais coisas pelo caminho. Perdi audição e precisei da ajuda da tecnologia para ouvir. Graças a isso posso escolher se quero o acolhimento do silêncio ou se quero o acolhimento dos barulhos da vida. Acabo algumas vezes me sentindo privilegiada por poder escolher. E graças a isso minhas noites de sono são sempre deliciosamente silenciosas! E o fato de poder ouvir é sempre um privilégio! Mas claro, não foi nada fácil. Aceitar as nossas perdas, alheias aos nossos desejos, é muito duro. Hoje, quase 10 anos depois de vencer essa etapa ainda me dói em silêncio ter que escolher entre o banho de cachoeira e ouvir a água batendo nas pedras. Lembro-me da minha mãe, tocada pelo que eu estava passando, tentando imaginar o que seria pior: Perder a visão ou a audição. A audição nos conecta ao mundo, acredito que mais que a própria visão. É ela que nos dá a amplitude da vida que nos cerca 360º. A música, as risadas, as palavras, o barulho do mar... Tudo isso faz florescer nosso mundo interior. E a visão por sua vez é quem nos orienta e dirige. É graças à ela que podemos ver belezas como o por do sol, as telas de Monet e as flores. O que minha mãe não sabia na época, é que esse devaneio seria inútil. Pois eu também perdi a visão. Ano passado meu nervo ótico cansou de batalhar e entregou os pontos. O Glaucoma faz tempo que não dá sossego... E toda minha visão periférica foi embora. Vejo apenas aquilo que está bem na minha frente. O que eu e os médicos chamávamos de “olho bom” parou de enxergar. E o até então “olho ruim” é quem me presenteia com a visão que ainda tenho. Andar num local cheio de gente é missão impossível para mim. Esbarro em todo mundo. E me orientar em lugares desconhecidos é bastante complicado. Preciso juntar todos os pedacinhos que enxergo num quebra cabeças para formar o todo. E isso leva tempo! Mas por mais absurdo que pareça o que mais me dói é me passar por sem educação não cumprimentando aqueles que passam ao meu lado. Eu não os vejo e quando percebo que já os ignorei fico profundamente chateada, mas não há o que fazer. Vocês podem achar que estou louca, ficando mais aborrecida com isso do que com a própria perda de visão em si. A grande questão é que comecei a ver e ouvir de outra forma: com a alma. E ser gentil com as pessoas me faz feliz.
Aprendi que nossos sentidos são o nosso diálogo com o mundo. Os cheiros, cores, sons e texturas são o que nos liga à vida. E ter a visão e a audição levadas a limites extremos despertou em mim uma vontade ainda maior de viver. Pois outro mundo adormecido em mim até então, despertou. Rubem Alves dizia “Quero viver enquanto estiver acesa, em mim, a capacidade de me comover diante da beleza. Essa capacidade de sentir alegria é a essência da vida.” Vocês podem achar graça eu citar meu pai, afinal convivi com ele por trinta e oito anos e deveria ter absorvido em mim muito do que ele ensinou. Eu absorvi. Mas as mudanças que minha vida me propôs enfrentar fizeram-me mudar. E aquilo que li, ouvi e me comovi milhares de vezes ao longo da minha vida parece que são lidas e ouvidas agora pela primeira vez, com uma conotação completamente diferente. A vida vale a pena enquanto eu for capaz de sentir a beleza e me comover com ela. E a beleza existe nas mais variadas formas, que venho descobrindo suavemente com o correr dos dias. Não sei se vou ficar cega ou se terei o pouco de visão que me resta. Só sei que independente do que eu tenha que enfrentar, eu vou descobrindo que minha força e minha vontade de viver estão além dos limites que posso imaginar. E com isso transformo as belezas para tornar o meu mundo belo, da minha forma.
Não bastante ter perdido muita visão ano passado, minha mãe num supetão despediu-se de nós e foi brincar com os anjos e as estrelas. E nós que achávamos que a teríamos conosco por um bom tempo ainda, sentimos o susto e a dor... E a vida se fez urgente. Porque ela se esgota e se esvai. Urgente para amar, urgente para sonhar, urgente para viver, urgente para sentir. E aquilo do lado de fora que me foi tirado povoou o lado de dentro. A sensibilidade transborda junto com os olhos. Fiquei em silêncio. Não havia nada que eu pudesse colocar fora do meu corpo que expressasse minha dor de viver tudo junto e misturado. Qualquer tentativa seria em vão. E a vontade de fazer desse mundo um lugar mais doce para se viver só aumentou.
De novo, Rubem Alves me acode: “O que seria de nós sem o socorro do que não existe?” Todos nós sonhamos e amamos. E como pedras preciosas ocultas, nossos sonhos e amores moram dentro de nós e só nós podemos senti-los na sua forma genuína, ninguém mais... Meus sonhos e amores não são palpáveis e são frutos abstratos do meu viver... Apenas eu os conheço da forma como são, portanto só eu sei que existem. Porém, a despeito de não poder tocá-los, são eles que me enchem de vida. E, se algum dia não puder mais ver a primavera florida do lado de fora, tratarei de alguma forma florescer por dentro.
Eu não sou heroína. E nem quero ser. O que a vida espera de mim me desafiando tanto assim? Não sei... Mas sei que ela muito sorrateira trata de ajeitar as coisas. Há quase três anos atrás deixei minha carreira de arquiteta para cuidar do Instituto Rubem Alves e propagar a obra do meu pai. Não fosse isso estaria literalmente em maus lençóis, afinal de que adianta um arquiteto com baixa visão? Não sei... Mas essa sensibilidade latente que fervilha em mim certamente irá me auxiliar, ainda não sei como, a eternizar o legado tão humano deixado pelo meu pai. E aos poucos ouço o meu silêncio se transformando em melodia... 
Esse meu depoimento quer apenas lembrá-los que todos podemos transformar a vida dentro da gente. A força nós vamos encontrando pelo caminho. E sem que saibamos como, vamos consertando o que ficou atrapalhado. Não desistam da vida, por mais amarga que ela possa ser. Esse é um belo mundo que vale a pena ser vivido. Há belezas em todos os cantos, principalmente dentro de nós! Talvez o que a vida espera, é que a gente confie nela...



Raquel Alves